A união que mudou a indústria automotiva

Em janeiro de 2021, nasceu uma nova gigante do setor automotivo: a Stellantis, fruto da fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e o Grupo PSA (Peugeot-Citroën). Anunciada em 2019 e concluída no início de 2021, a união deu origem ao quarto maior conglomerado automotivo do mundo em volume de vendas, reunindo 14 marcas icônicas: de Fiat, Jeep e Peugeot a Opel e Maserati, e presença em mais de 130 países. Mais do que ampliar portfólios, a fusão integrou também duas amplas cadeias de suprimentos e redes de distribuição. Desde o início, executivos destacaram que grande parte das sinergias esperadas, estimadas inicialmente em €5 bilhões anuais, dependeria de uma integração logística eficiente. Surpreendentemente, já em 2022, a Stellantis anunciou ter superado essa meta, alcançando €7,1 bilhões em economias, impulsionada sobretudo por ganhos operacionais decorrentes da racionalização da produção e da logística.

Por trás desse movimento histórico, houve um trabalho silencioso e decisivo: a integração das operações logísticas de duas montadoras com culturas e sistemas distintos. “A logística era o sistema nervoso dessa fusão. Sem a integração eficaz das cadeias de suprimentos, redes de distribuição e sistemas de abastecimento, a Stellantis não conseguiria operar como uma única empresa”, afirma Sérgio Alvim. Autor do artigo “A união que mudou a indústria automotiva”, publicado na Revista Científica Núcleo do Conhecimento, Alvim liderou a integração logística entre FCA e PSA na América do Sul durante o processo de fusão. Em entrevista à nossa reportagem, ele detalhou os bastidores da megafusão, os principais achados de sua análise e as perspectivas para o futuro do setor.

Uma fusão histórica e seus desafios logísticos

A criação da Stellantis representou um dos maiores movimentos da indústria automotiva recente. “Trata-se de uma fusão de proporções históricas, que mudou o panorama competitivo global”, contextualiza Sérgio Alvim. Segundo ele, mais do que os números bilionários e o status de mega companhia, foram os bastidores logísticos dessa união que realmente garantiram que 1 + 1 resultasse em 3, ou seja, que a soma FCA–PSA gerasse uma empresa mais forte do que as partes isoladas. A missão, no entanto, estava longe de ser trivial.

Alvim, que acumula mais de 20 anos de experiência no setor automotivo e ocupava posições estratégicas na FCA antes da fusão, foi um dos responsáveis por liderar a integração logística dos grupos na América do Sul. Ele relembra a pressão e a complexidade envolvidas no processo: “Foi um desafio histórico. Em poucos meses, precisávamos consolidar rotas, integrar sistemas de TI, alinhar contratos com transportadoras e centros de distribuição. E, mais importante, unir pessoas. Havia dois times, duas formas de pensar, duas histórias. Precisávamos transformar tudo isso em uma só equipe, com um objetivo comum”, relata. Tudo isso ocorreu em meio a circunstâncias adversas, como a pandemia de COVID-19 e a escassez global de semicondutores, fatores que tornaram a logística mundial ainda mais complexa.

Para dar conta do recado, a Stellantis adotou uma série de estratégias de integração logística que Alvim detalha em seu artigo e em nossa conversa. Entre elas, destacaram-se:

  • Padronização de processos e sistemas: unificação de plataformas tecnológicas e procedimentos operacionais nas fábricas, centros de distribuição e transportes dos dois antigos grupos;
  • Sustentabilidade na cadeia de suprimentos: adoção de práticas de logística verde, como uso de contêineres retornáveis em vez de embalagens descartáveis e otimização da logística reversa para evitar viagens vazias; na Europa, incremento do transporte de veículos por trem, reduzindo emissões de CO₂, e eletrificação de frotas de apoio (empilhadeiras e veículos internos elétricos) com estudos para uso de caminhões elétricos ou movidos a biogás em entregas urbanas;
  • Digitalização e hubs logísticos: implantação de um novo sistema global de gestão de transportes e armazenagem (baseado na plataforma digital já utilizada pela FCA), além da criação de centros logísticos unificados em regiões estratégicas, otimizando rotas e prazos;
  • Captura de sinergias operacionais: consolidação de armazéns próximos que antes eram duplicados, por exemplo, onde FCA e PSA mantinham cada uma um centro de distribuição regional, a Stellantis integrou em um único centro maior, ganhando economia de escala. Também foram unificadas compras e fornecedores, permitindo negociar fretes marítimos e terrestres em volumes combinados maiores e obter custos menores. A integração logística, desde o início, foi tratada como um pilar financeiro e operacional da fusão, dada sua capacidade de gerar economias significativas e melhorias de desempenho.

Alvim explica que o conjunto dessas iniciativas tinha como objetivo não apenas ganhos de eficiência, mas também evitar um problema recorrente em processos de fusão: a paralisação ou o “choque” entre culturas corporativas distintas. “Implantamos treinamentos em todas as pontas, de gestores a operadores de armazém e motoristas. A ideia era garantir que todos compreendessem o novo fluxo, o novo ritmo e a nova cultura. A integração não pode ser apenas de sistemas; precisa ser de mentalidade”, destaca o executivo. O trabalho humano de unificar as equipes foi tão crucial quanto o alinhamento dos sistemas de TI ou das rotas de transporte.

Resultados concretos e lições aprendidas

Os esforços de integração logo se traduziram em resultados concretos. Já nos primeiros meses após a fusão, a Stellantis começou a colher frutos. O redesenho de rotas e a consolidação de centros logísticos permitiram reduzir em até 18% o tempo médio de entrega de veículos e peças em alguns mercados. Ao mesmo tempo, a operação unificada cortou custos de transporte, eliminou armazéns redundantes e melhorou o giro de estoque, aumentando a agilidade de toda a cadeia. Marcas oriundas da antiga PSA, como Peugeot e Citroën, passaram a aproveitar a infraestrutura logística mais capilar da Fiat/Jeep para alcançar uma rede maior de cidades com mais eficiência, algo que levaria anos para ser construído de forma independente.

Dois anos depois, os ganhos tornaram-se ainda mais evidentes. “As sinergias totais superaram os €7 bilhões já em 2022, e estima-se que cerca de 20% desse valor, aproximadamente €1,4 bilhão por ano, tenha vindo diretamente da integração logística e produtiva”, aponta Alvim, com base em análises internas e relatórios financeiros da Stellantis. Essa economia foi resultado de diversas frentes: consolidação de armazéns (com redução de custos em imóveis, pessoal e utilidades), negociações logísticas mais vantajosas (graças ao aumento no volume de frete contratado) e eliminação de estoques duplicados entre FCA e PSA. Além do impacto financeiro, houve ganhos operacionais relevantes, como a redução de dois a três dias nos prazos médios de entrega de veículos na Europa após a unificação dos centros de distribuição, além do aumento na disponibilidade de peças de reposição com a integração dos catálogos de componentes, fator que melhorou significativamente o atendimento no pós-venda.

Nem tudo, porém, foram flores no início do processo. Alvim admite que a integração enfrentou obstáculos, desde a harmonização de contratos preexistentes com fornecedores logísticos, alguns exclusivos da FCA ou da PSA, que precisaram ser renegociados, até os investimentos significativos em tecnologia da informação e treinamento de pessoal para adaptação aos novos padrões. “Tivemos que lidar com contratos sobrepostos e sistemas distintos, e investir pesado para unificar tudo isso. Houve um custo inicial, mas que se pagou rapidamente com os ganhos gerados”, comentou. Para ele, uma das principais lições da fusão entre FCA e PSA é que integrar não significa simplesmente cortar e colar operações: exige planejamento minucioso, investimento consistente e uma gestão de mudança sensível às pessoas envolvidas.

Especialistas de mercado também consideram o caso Stellantis como um exemplo de sucesso. Analistas destacam que a logística costuma ser o calcanhar de Aquiles em muitas fusões, se mal conduzida, os ganhos previstos evaporam e podem até se transformar em prejuízos. “O que vimos aqui foi um exemplo de planejamento e execução eficiente, que deve servir como referência para outras empresas”, avaliou Marcela Ribeiro, consultora automotiva da MobiAuto Strategy, em referência ao trabalho da equipe de Alvim na Stellantis. Esse reconhecimento externo reforça as conclusões de Sérgio Alvim em seu artigo: a integração logística eficaz foi determinante para o sucesso da Stellantis, evitando o choque de culturas e a lentidão que já comprometeram outras megafusões industriais. “O caso Stellantis deixa claro que logística não é coadjuvante, e sim protagonista em fusões de grande porte”, resume Alvim.

Da prática à academia: a importância da difusão do conhecimento

A história de como FCA e PSA se tornaram uma só empresa traz ensinamentos valiosos e Sérgio Alvim decidiu compartilhar essa experiência para além dos muros corporativos. Seu artigo foi publicado em 2021 na Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, uma publicação eletrônica mensal de acesso aberto. Com mais de 18 milhões de leitores em 180 países, a revista atua como um importante canal de difusão de conhecimento técnico e acadêmico sobre temas industriais e econômicos. “Publicar esse estudo em uma revista científica foi uma forma de alcançar tanto o público acadêmico quanto profissionais do setor”, explica Alvim. Ele destaca que, com frequência, análises aprofundadas sobre operações industriais ficam restritas a relatórios internos ou a círculos muito fechados. “A Núcleo do Conhecimento permite levar insights da indústria a um público amplo, com rigor acadêmico e linguagem acessível. É uma ponte entre a experiência prática e a teoria”, ressaltou.

No artigo, Alvim adotou uma abordagem metodológica estruturada, combinando dados atualizados de fontes públicas e do próprio mercado automotivo com sua experiência profissional. “Busquei cruzar comunicados oficiais da Stellantis, informações divulgadas à imprensa e indicadores internos aos quais tive acesso, para construir uma análise sólida”, relata. Segundo ele, todo o material utilizado respeitou as confidencialidades comerciais, pois o foco era apresentar tendências e resultados consolidados, e não segredos empresariais. Essa combinação de pesquisa documental com know-how de campo tornou o artigo especialmente rico. “Vivenciei de perto esse processo e senti que precisava registrar e analisar tudo aquilo de forma mais ampla”, confessa Alvim sobre sua motivação. “A fusão FCA-PSA foi um momento histórico na indústria, e eu queria extrair lições dali, não apenas para a empresa, mas lições acadêmicas, de gestão e de economia”, completa.

A revista científica ofereceu o espaço ideal para essa reflexão. Diferentemente de uma matéria jornalística convencional, o artigo de Alvim pôde incluir citações de estudos, notas de rodapé e uma discussão conceitual sobre fusões e estratégias logísticas. “Foi importante embasar as conclusões. Referenciei desde comunicados da Stellantis até análises de consultorias e teorias de logística”, explica. Essa robustez acadêmica, no entanto, não comprometeu a clareza do texto: escrito em português acessível e com exemplos práticos, o trabalho teve excelente repercussão. “Recebi feedback de estudantes de engenharia de produção, colegas executivos e até concorrentes. Muitos comentaram como foi útil conhecer ‘por dentro’ uma fusão desse porte”, orgulha-se Alvim.

Da operação à estratégia: a visão de Sérgio Alvim sobre fusões

A autoridade de Alvim para escrever sobre o assunto advém de sua sólida trajetória profissional e formação acadêmica. Economista de formação com mestrado em Administração, Sérgio Alvim, 45 anos, especializou-se em logística e análise econômica do setor automotivo ao longo de mais de duas décadas de carreira. Ingressou na antiga Fiat Automóveis nos anos 2000 e percorreu diversos cargos nas áreas de operações e supply chain. Antes da fusão FCA-PSA, ocupou posições de liderança na logística regional da FCA, comandando centros de distribuição e projetos de melhoria de processos. Essa experiência o levou a ser escolhido para integrar a força-tarefa global que unificou as operações logísticas da nova Stellantis em 2020.

Alvim combina, portanto, o conhecimento prático de quem esteve na linha de frente da indústria com uma visão analítica aguçada. Atuou como consultor econômico em projetos automotivos e mantém-se atualizado sobre tendências tecnológicas e de mercado. Participou de cursos de especialização em gestão da cadeia de suprimentos e frequenta congressos do setor, tanto como ouvinte quanto como palestrante. Essa combinação de qualificações lhe rendeu convites para contribuir com artigos e pesquisas, como o trabalho publicado na Núcleo do Conhecimento. “Acho que minha grande escola foi o chão de fábrica e os centros de distribuição, mas sempre gostei de estudar teoria também”, comenta. Essa mentalidade de aprendizado contínuo transparece na forma articulada com que Alvim discute desde indicadores financeiros até o dia a dia de um armazém.

Questionado sobre o que considera seu principal aporte com o artigo “A união que mudou a indústria automotiva”, Alvim pondera por um momento antes de responder. “Acredito que consegui mostrar, com números e exemplos, algo que muitas vezes passa despercebido: a logística pode decidir o sucesso ou o fracasso de uma fusão”, afirma. Segundo ele, muitas análises sobre fusões automotivas concentram-se no portfólio de marcas, participação de mercado, questões trabalhistas ou financeiras, todos pontos importantes, mas subestimam a engrenagem logística que fará a nova empresa funcionar. “Meu artigo deixa claro que a integração de cadeias de suprimentos, sistemas e pessoas deve estar no topo da lista de prioridades em qualquer fusão. Se essa parte falhar, todo o resto fica comprometido”, resume.

Olhando adiante: eletrificação, sustentabilidade e concentração de mercado

Para além do caso específico da Stellantis, Sérgio Alvim enxerga a fusão FCA-PSA como reflexo de transformações maiores na indústria automotiva e, talvez, um prenúncio do que está por vir. Ele destaca três grandes tendências que moldam o futuro do setor: a eletrificação dos veículos, a busca por sustentabilidade e a crescente concentração do mercado em torno de poucos grandes grupos.

No front da eletrificação, Alvim lembra que tanto a FCA quanto o PSA estavam um pouco atrasados no desenvolvimento de tecnologias para veículos elétricos e autônomos pouco antes da fusão. “Empresas como Toyota, Volkswagen e startups como a Tesla já vinham liderando essa corrida. FCA e PSA perceberam que, juntas, teriam mais fôlego para investir e recuperar terreno”, analisa. De fato, um dos objetivos estratégicos da Stellantis é combinar recursos para avançar na transição energética sem duplicar esforços. “Hoje, vemos a Stellantis anunciando plataformas globais para veículos elétricos, fábricas de baterias e planos ambiciosos de eletrificar grande parte de suas linhas até 2030”, comenta Alvim, referindo-se aos anúncios publicitários da companhia. Ele acredita que a escala alcançada pela fusão foi fundamental para viabilizar esses investimentos massivos em P&D verde. “Nenhuma das empresas sozinha talvez tivesse capital suficiente para bancar a mudança para o carro elétrico na velocidade necessária. Agora, com a Stellantis, elas têm”, afirma.

A sustentabilidade aparece como prioridade não apenas nos produtos finais, carros mais limpos, mas também em toda a cadeia produtiva. Alvim cita que a Stellantis, assim como outras montadoras globais, estabeleceu metas ambiciosas de redução de emissões nas fábricas, uso de energia renovável e programas de economia circular. No âmbito logístico, ações descritas em seu artigo, como transporte ferroviário ampliado, eliminação de embalagens descartáveis e frotas internas elétricas, contribuem para reduzir a pegada de carbono das operações. “Sustentabilidade deixou de ser ‘agradável de ter’ para ser imperativo de negócio. Clientes, investidores e legislações estão pressionando por isso”, pontua Alvim. Ele ressalta que eficiência e sustentabilidade andam de mãos dadas no caso da Stellantis: reduzir desperdícios, otimizar rotas e usar energias limpas poupa recursos financeiros e beneficia o meio ambiente. “No fundo, logística verde é logística eficiente. O caso Stellantis mostrou isso claramente”, conclui.

Por fim, sobre a concentração de mercado, Sérgio Alvim observa que a formação da Stellantis se insere em uma tendência de consolidação no setor automotivo. “Hoje, poucas mega montadoras controlam dezenas de marcas. Temos a Volkswagen (dona de Audi, Porsche, entre outras), a Toyota (com Lexus, Daihatsu…), a própria Stellantis, além de alianças como Renault-Nissan-Mitsubishi”, enumera. Essa concentração, segundo ele, é uma resposta aos enormes desafios tecnológicos e econômicos atuais: desenvolvimento de carros elétricos, veículos autônomos, serviços de mobilidade, todos exigindo capital e escala globais. “As montadoras estão unindo forças para sobreviver e liderar a nova era. Acreditamos que quem não tiver escala pode ficar para trás”, avalia. Por outro lado, ele admite que esse movimento traz questões a serem observadas, como o impacto na concorrência e na diversidade de opções para os consumidores. “Menos grupos dominando o mercado poderia reduzir a concorrência? É algo que os reguladores acompanham. Mas, até agora, vemos que a rivalidade entre os gigantes continua acirrada, e novas empresas, como as chinesas de veículos elétricos, também estão surgindo para desafiar”, pondera Alvim.

Ao encerrar a entrevista, Sérgio Alvim demonstra um otimismo cauteloso. “Tenho muito orgulho do que fizemos na Stellantis. Mas isso foi só o começo”, afirma, com o entusiasmo de quem vive a inovação diariamente. Para ele, a fusão bem-sucedida abriu caminho para que a empresa enfrente com solidez os próximos capítulos da mobilidade. “A Stellantis tem um potencial enorme e, com uma logística sólida, estamos preparados para qualquer desafio que venha pela frente”, conclui Alvim. Suas palavras refletem não apenas a confiança de um veterano que ajudou a construir esse novo gigante, mas também o espírito de uma indústria em transformação, unida pelo conhecimento, pela tecnologia e pela busca de um futuro mais sustentável e integrado.

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